Município da Covilhã
Tlf:. 275 330 600 (Chamada para a rede fixa nacional)
09-01-2024

OS TECELÕES DE HISTÓRIAS DA COVILHÃ

A arte do debuxo moldou a indústria têxtil e a própria história da Covilhã.
O saber dos mestres debuxadores, precursores empíricos das modernas técnicas de design industrial, garantia-lhes um papel de relevo na estratificação empresarial e na organização do trabalho. Jorge Trindade, ainda hoje formador e guardião dessa memória e saber, perpetua a arte do debuxo enfatizando a importância da renovação e inovação a partir do legado têxtil da região.

Numa cidade onde há muito que a malha urbana está umbilicalmente ligada ao tecido industrial, a arte do debuxo na Covilhã transcende a mera funcionalidade, tornando-se a alma pulsante da indústria dos lanifícios. Entrelaçada nas linhas do tempo, é a história do debuxo e dos seus artesãos que dá cor e vida ao têxtil da região. Jorge Trindade faz parte da memória viva de um tempo em que “os melhores debuxadores eram disputados como são, hoje em dia, os jogadores de futebol”, conta o próprio. Dos melhores padrões e jogos de cor dependia o sucesso ou insucesso de uma empresa. A sua importância concedialhes, por isso, um papel destacado dentro da estratificação empresarial. Os melhores e mais disputados geriam, na verdade, os processos e projetos das empresas têxteis, sendo encarados como os precursores da importância do moderno design industrial. 

Tendo crescido no seio de uma Covilhã laboriosa, onde as chaminés deli¬neavam o horizonte e os teares eram a sua banda sonora, a juventude de Jorge Trindade foi igual há de milhares da sua geração. Começou a trabalhar ainda criança como tintureiro. No início da década de 1970, mal dobrou os 14 anos necessários para estudar à noite, inscreveu-se na Escola Industrial e Comercial Campos Melo para fazer o curso de debuxo. Mais do que a aprendizagem de um novo ofício, foi a entrada num outro escalão social que lhe permitiu ganhar mundo e sonhar com outra vida. 


Naqueles tempos, a Covilhã era um mosaico de pequenas fábricas, cada uma reproduzindo os modelos industriais de sempre, garantindo uma única fase das várias fases da indústria têxtil. Sem a robustez da atual organização vertical, onde se faz tudo dentro da mesma unidade fabril, a produção era relativamente pequena e para consumo nacional. 


“Hoje produz-se num dia o que se fazia num mês. Todos os dias saem da Covilhã 40 a 50 mil metros de tecido, com metro e meio de largura. Vai daqui até à Guarda”, garante Jorge Trindade, rebatendo asser-tivamente a ideia que a indústria têxtil perdeu o peso que já teve na região. 


“Claro que há menos pessoas a trabalhar e o encerramento de cada fábrica, nos anos 70 e 80, foi uma tragédia, mas, quando entrei, os teares mais evoluídos introduziam um fio 100 vezes por minuto. Hoje, em vez dessas 100 batidas fazem 600, e a introdução da trama já não é uma bobine de 60 ou 70 gramas, mas de cinco ou três quilos”, recorda Jorge Trindade. 


O debuxo, diz este mestre, vai além do lado estético. É um diálogo entre o artista e a matéria, um conhecimento profundo das fibras e das necessidades do mercado. 

“Um debuxador não é só um designer. Tem de conhecer os materiais e a quantidade de fios que cada centíme¬tro suporta. Sem o ‘calibre do fio’, ou faz panos que esgaçam, sem solidez, ou panos que nem se conseguem fabricar”, assevera Jorge Trindade.


O DEBUXADOR TEM DE ENTENDER O MERCADO 


Chegado da tropa, foi trabalhar para Gouveia, ficando surpreendido quando percebeu que, ao contrário do que era a prática enraizada na Covilhã, aí encon¬trava todo o processo produtivo na mesma unidade, da cardação, à penteação, tinturaria ou acabamentos. 

“Foi como uma universidade para mim”, diz, lembrando que por essa altura começou a frequentar uma formação de marketing. A visão de conjunto que ganhou, ao trabalhar em todos os processos da fiação, fez com que quisesse ter o conhecimento do preço e dos produtos nas feiras internacionais. “A parte técnica é importante, mas não serve de nada fazer tecidos bonitos se ninguém os quiser comprar. O debuxador tem de ter um conhecimento do mercado e entendê-lo”. 

A importância dos debuxadores para as empresas, e o salário incomparavelmente mais alto do que o dos restantes trabalhadores, fechava-os dentro do seu próprio conhecimento, recorda Jorge Trindade. “No meu tempo o debuxador era uma pessoa fechada que tinha o seu trabalho em gavetas. Concentrava em si o conhecimento. Quando cheguei deixei de lado as secretárias e passei a trabalhar em cima da mesa. Quanto mais souberem as pessoas que estão ao meu lado, mais fácil é o meu trabalho”. 

Conscientes de que um debuxador bem-sucedido garantia mais e melhores  vendas, o peso que estes conquistaram no modelo de produção industrial fazia com que fossem uma espécie de “confessores, ou disciplinadores da própria empresa”, garante Jorge Trindade. Sem especificar nomes, este mestre recorda-se quando expulsou o próprio patrão da fábrica, “onde raras vezes ia e criava mal-estar junto dos trabalhadores”, dizendo que só se podia garantir a qualidade e produção dando o exemplo a partir de cima. A ideia de perder um dos debuxadores mais disputados fez com que o funcionário vencesse o braço de ferro. O peso dos debuxadores garantia que, mais do que desenhadores e criativos, eram a alma da empresa e a sua maior valia. Um bom debuxador fazia vender mais. 

“Mesmo os grandes industriais que apareceram na Covilhã, como o Paulo Oliveira, foram debuxadores que depois montaram a própria empresa”, lembra Jorge Trindade. 

Formador de debuxadores há 17 anos, nos corredores da Paulo Oliveira e Pentea¬dora, parece visivelmente satisfeito com o rejuvenescimento da atividade: “quase todos os debuxadores que aí estão passa¬ram pelas minhas mãos”. Jorge Trindade encara os jovens que se iniciam no debuxo como os herdeiros de um legado, os novos narradores de uma história têxtil que continua a ser escrita, linha por linha, trama por trama, em um tecido que é tanto da Covilhã quanto do mundo.